domingo, fevereiro 06, 2005

Esta "sombra" Não é Minha...É Nossa!

«Se eu morrer agora, não terei do que me queixar. A vida foi muito generosa comigo. Plantei muitas árvores (…). Claro, sentirei muita tristeza, porque a vida é bela, a despeito de todas as suas lutas e desencantos. Quero viver mais, quero terminar a minha sonata. Mas se por acaso ela ficar inacabada, outros poderão arrumar o seu fim. Assim como aconteceu com a Arte da Fuga, de Bach (1685 – 1750). (…) Bach morreu, mas a obra já estava claramente estruturada. Foi possível a um outro termina-la. Se o mesmo acontecer comigo não terei do que me queixar. Mas fica a pergunta: e aqueles que não tiveram tempo para escrever o seu nome?
Já me fiz essa pergunta várias vezes, pensando nos meus filhos. Eu também queria que eles levassem as suas sonatas até ao fim, mesmo que eu não tivesse aqui para ouvi-las. Mas não se pode ter certezas. A possibilidade terrível sempre pode acontecer. E se ela acontece, vem o sentimento terrível de que tudo foi inútil.
Aí, de repente, eu experimentei satori: abriram-se meus olhos, e vi como nunca havia visto. Senti que o tempo é apenas um fio. Nesse fio vão sendo enfiadas todas as experiências de beleza e de amor por que passámos. “Aquilo que a memória amou fica eterno”. (…) o olhar de uma pessoa amada, a sopa borbulhante sobre o fogão de lenha, as arvores de Outono, o banho de cachoeira, mãos que se seguram(…): houve momentos na minha vida de tanta beleza que eu disse para mim mesmo: “valeu a pena ter vivido toda a minha vida para viver esse único momento”. Há momentos efémeros que justificam toda uma vida.
Compreendi, de repente, que a dor da sonata interrompida se deve ao facto de que vivemos sob o feitiço do tempo. Achamos que a vida é uma sonata que começa com o nascimento e deve terminar com a velhice. Mas isso esta tudo errado. Vivemos no tempo, é bem verdade. Mas é a eternidade que dá sentido à vida.
Eternidade não é o tempo sem fim. Tempo sem fim é insuportável. Já imaginaram uma música sem fim, um beijo sem fim, um livro sem fim? Tudo o que é belo tem de terminar. Tudo o que é belo tem de morrer. Beleza e morte andam sempre de mãos dadas.
Eternidade é o tempo completo, esse tempo do qual a gente diz: “valeu a pena”. Não é preciso evolução, não é preciso transformação: o tempo é completo e a felicidade é total. É claro que isso, como diz Guimarães Rosa, só acontece em raros momentos de distracção. Não importa. Se aconteceu fica eterno. Por oposição ao “nunca mais” do tempo cronológico, esse momento está destinado ao “para todo o sempre”.
Compreendi, então, que a vida é uma sonata que, para realizar a sua beleza, tem de ser tocada até ao fim. Dei-me conta, ao contrário, de que a vida é um álbum de minissonatas. Cada momento de beleza vivido e amado, por efémero que seja, é uma experiência completa que está destinada à eternidade. Um único momento de beleza e amo justifica a vida inteira.»


in: As Cores Do Crepúsculo A estética do envelhecer
Rubem Alves



Há sombras...coloridas, escuras, cinzentas, transparentes como estas que o livro mostra! Nada são mais que sombras transparentes, que vivem lado a lado connosco, mas...Só alguns conseguem ter aquele olho que vê além das cores que vemos, além das caras que conhecemos...
Quando li este livro senti...uma angústia dentro de mim...fez-me chorar, fez-me ter medo do amanhã, como em vários outros momentos tive, mas...Reparei que estava lendo um livro, de alguém bem mais velho que eu, e que sabe muito melhor que eu essas angústias e...senti-me leve, senti-me reconfortada, por imaginar que algures no Mundo da Sombras, existe quem pense em coisas que todos temos na cabeça, mas de diversas formas...Uns dizem com umas palavras, outros usam outras...Mas sempre chegamos a esta sombra que nos assombra...A Morte...Esta sombra que não é minha...É nossa!

Cathy

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